quinta-feira, 10 de março de 2022

Cool Girl e o Príncipe Encantado

Dizem-nos o que ser e quando o ser. Sentimo-lo connosco todos os dias, algo invisível e que apenas pesa no ar. Passam-se anos, décadas, séculos e este algo teima em ficar. Entra pelos nossos ouvidos, infiltra-se nos nossos pensamentos e faz-nos acreditar. Acreditar que podemos reduzir uma pessoa a uma personalidade, a um género, a uma idade, a um estereótipo, a um momento.

8 por 8

 
— A mulher ideal é silenciosa. Dedica-se aos filhos e às lidas domésticas. Deve, sempre, satisfazer as necessidades do marido. Deve rir, mas não muito. Não muito alto. Talvez deva só sorrir e ser simpática. Simpática e submissa. Culta e inteligente. Mas não muito, não mais do que os outros. Não pode ser extravagante, mas, sim, pura e inocente. Deve evitar ser independente e evitar ser ela própria. Deve, a todo o custo, limitar-se a uma versão da sua personalidade que seja aplaudida pela sociedade. Deve, sim, sempre. Sejam femininas! Por outro lado, o homem ideal tem de ter ideias convictas. Tem de pensar por si. Tem de ser o chefe de família. Deve manter uma imagem desmedidamente autoritária, intransigente, insensível e forte, muito forte. Deve limitar as emoções. Não pode ser maricas, não. Maricas nem pensar. Corajoso, muito corajoso. Deve gostar do que está estipulado. Pode variar entre desporto, caça e ciências exatas. E, acima de tudo, nunca, nunca chora. Aliás, um homem nem sequer é dotado dessa capacidade. Sejam viris!

— Passou muito tempo. Fizeram-se revoluções. Houve mudança. Ai, como soa bem. Mudança. Rutura. Evolução. As mulheres saíram e educaram-se verdadeiramente. Pensaram e decidiram mudar. Os homens, depois de salvarem a vida uns aos outros, também mudaram a sua perspetiva. Evoluímos. Evoluímos todos. E a sociedade?

— A mulher ideal não tem tempo. Não tem tempo para nada. Finalmente, conseguiu provar que conseguia fazer tudo. Privilegia a sua educação e a sua formação. É extrovertida, engraçada, ri-se das piadas, mas não as leva a peito. Tem de achar piada. Gosta daquilo de que antes não gostava. Não gostava nem podia gostar. Mas é melhor que não se afaste muito do que é suposto… Tem de preservar o seu lado feminino. O que nós, sociedade, consideramos como feminino. É independente, cuida de si, mas também dos seus. Já não precisa de querer ser mãe. Não precisa, mas também não lhe custa nada. Deve gostar de crianças. E de homens também! Não queremos solteironas. Deve ser apaixonada, carismática, sensível. Um espírito livre, mas que no fundo quer assentar. Deve ser “diferente das outras”. Deve ser tudo o que um homem procura: cool girl.

— Não vamos complicar o que é simples.

Laura Ferros Azevedo
O homem ideal… Bem… Nem nós sabemos. Deve proteger a sua veia histórica de cavalheiro, mas com cuidado que nós agora misturamos boa educação com machismo. Deve consagrar a sua posição no meio de uma dualidade de critérios. Critérios opostos. Na dúvida da obrigatoriedade de ter de dar o primeiro passo, como manda a lei, e, simultaneamente, aprender a não se sentir inferiorizado se tal não acontecer. Deve manter os valores antigos e mudar para os novos. Agora, tanto condenamos um homem que chora como um que não o faz. Glorificamos o homem que vai à frente, que protege a família, mas, ao mesmo tempo que lhe chamamos machista, chamamos-lhe maricas, se não o fizer. A verdade é que caímos em extremos com facilidade. É o novo príncipe encantado, que de novo não tem nada, mas tem de ter tudo. Este é o homem ideal que aprendeu a viver com uma bipolarização dos conceitos que lhe impomos.

— E se não quiserem ser homem, nem mulher? Não podemos ser nós próprios?
Vamos sim. Não será a personalidade de uma mulher e de um homem um espectro colorido e versátil? Um pouco de tudo o que já viram, de todos aqueles que conheceram e de todos os lugares por onde passaram? Um mosaico de talentos, medos, conquistas, gostos, pedaços de memórias e de sonhos dispersos? Uma dimensão superior daquilo que são, daquilo que nunca foram e daquilo que serão? Não será a personalidade do ser humano algo tão vasto e tão único que faz destes critérios “masculino e feminino” apenas rótulos de ilusões? Não podemos nós, numa sociedade que define o que está certo por modas, sermos apenas nós próprios? Não podemos nós respeitar as escolhas de cada um? Não podemos nós respeitar a decisão de um homem ficar em casa com os filhos, enquanto a mulher vai trabalhar, se ambos assim o entenderem? Nós somos a sociedade, nós provocamos a mudança.



Laura Ferros de Azevedo


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