terça-feira, 26 de abril de 2022

Entrevista Luísa Feijó

“Abril cumpriu a sua missão.” Afirma, sem hesitar, Luísa Feijó.

Luísa Feijó


Luísa Feijó, mulher de abril, viveu por dentro a crise estudantil de 1969 em Coimbra. Não escondendo alguma desilusão por tudo o que se seguiu à revolução, não esquece o passado e deixa claro que virar as costas ao futuro nunca será solução: “Nunca voltar atrás. É demasiado pesado”.

Sentam-se duas gerações à volta de uma mesa numa biblioteca. Por entre estantes de livros, por entre histórias e estórias, conta-se a história da liberdade.


Viveu grande parte da sua vida sob o Estado Novo. Enquanto criança, enquanto jovem, como é que era a sua vida nessa altura?

Eu vivi numa família que muito cedo se apercebeu que o Estado Novo reprimia muito. Ou se era a favor das políticas do Governo ou, imediatamente, havia castigos. Desde muito cedo, vivi isso. Tive um tio e ele era uma pessoa que “não se calava muito”. Nós tínhamos ordem em casa que não se podia falar abertamente com quem não se conhecia. Mas esse meu tio falava muito e, uma noite, vieram-no buscar a casa. A família esteve sem saber dele cinco anos. Eu era pequena, tinha cinco anos, mas sentia a angústia da minha avó, da minha tia, das minhas primas que não percebiam porque é que o pai não vinha. Sabia-se que devia ter sido a PIDE que o levou. Ao fim de cinco anos, comunicaram com a minha avó dizendo-lhe que ele estava internado porque tinha tido um problema psiquiátrico. A minha avó conseguiu vê-lo, mas ele vinha com umas conversas sem nexo. Por exemplo, ele dizia que a sua esposa lhe tinha estragado a vida e dizia até que uma das suas filhas, a Manuela, que não era dele. A minha avó ficou alarmada com tudo aquilo e pensou: “isto foi o que lhe meteram na cabeça”. Na altura a minha avó disse que só se viam os braços e que se viam várias cicatrizes. Ele nunca mais quis ver nem a filha nem a mulher, nunca mais até morrer. Mas a minha avó, sempre que não se falava sobre a mulher ou a filha, viu que ele até estava bem. Por isso, pediu alta e levou-o para Coimbra. Ao fim de cinco dias ele deitou fogo à casa e ele acabou por ir para a ala psiquiátrica do Hospital Universitário de Coimbra. Ele estava, realmente, com uma doença psiquiátrica que foi provocada pelo que lhe fizeram, pelo que lhe disseram…


De certa forma fizeram-lhe uma lavagem cerebral…

Uma lavagem cerebral durante esses cinco anos. Ele não tinha recordações desses cinco anos. Entretanto, com o curso que eu tirei, que foi análises clínicas, eu fui trabalhar para o Hospital da Universidade de Coimbra e claro que tive contacto com a psiquiatria e aí descobri algumas coisas. Havia alturas que ele não podia ser visto porque ele era muito agressivo e tinha que ser colocado naqueles coletes de forças e cheguei a ir vê-lo nessas fases. Uma pessoa que foi educada, criada, num ambiente destes fica sempre marcada. O estado novo foi, para mim, uma coisa em que tínhamos muito receio de falar. Eu venho de uma família também com estas características, isso ajudou-me a ter essa perceção.


Durante o Estado Novo, para além de não ser livre e de ser jovem era ainda mulher. Isso numa sociedade patriarcal como a daquela altura, restringia ainda mais as suas liberdades. Como é que se sentia com isso?

Eu só me apercebi mais disso já mais tarde. No serviço onde eu trabalhava, faziam todos o mesmo trabalho e os homens ganhavam mais que as mulheres, nunca percebi porquê. Outra coisa que me fazia muita confusão era a questão das eleições, porque as eleições eram feitas e era a secretaria do Hospital em que trabalhava que mandava o nosso voto, nós não tínhamos direito ao voto. Nas eleições do Humberto delgado, houve uma grande movimentação, mas a PIDE era uma coisa impressionante e estava infiltrada em todo o lado.


Estudou Analises Clínicas em Coimbra e esteve naquele que foi o mais emblemático movimento estudantil em Portugal, a crise académica de 69. O que é que se sentia em Coimbra nessa altura? Já tinha consciência política nessa altura?

Os estudantes estavam bastante politizados.


E você?

Eu também. Talvez por ter sofrido bastante. Houve outra coisa que me fez também muito interessada. A minha avó era professora e quando ele casou já tinha dois filhos, não podia casar. Aliás os professores tinham uma série de regras para poderem casar. Quem é criado num ambiente destes, acaba por ir à procura. Mesmo alguns discos de música, estavam proibidos. Eu conseguia comprar esses discos numa loja de vidros em Coimbra que tinham um sótão e era lá que se comprava assim na clandestinidade.





Havia um grande sentimento de união por parte dos estudantes na crise académica de 69.




Nesse período de 1969, estávamos já numa decadência do regime. Salazar estava já velho, Marcello Caetano subiria ao poder uns anos depois e, depois de em 1962 ter explodido uma crise estudantil em Lisboa, em 1969, em Coimbra, existe a maior crise estudantil em Portugal. O que é que gerou essa crise?

Foi no dia 17 de abril. Eu lembro-me perfeitamente disto porque eu estava lá. O Américo Tomaz ia lá inaugurar a faculdade de Matemática e a academia resolveu em plenário feito na associação académica, que o presidente da associação académica iria falar nessa inauguração. Na associação académica ninguém podia entrar, por tanto, a PIDE não entrava, a não ser que estivessem infiltrados la dentro. Estava a academia toda a porta da faculdade de farmácia, deixaram um espaço para passar com as devidas cerimónias e isso tudo. Mas, não deixaram o presidente da associação académica falar e ele levantasse e pede para falar e o Américo Tomaz vai se embora. Aquilo criou uma revolta terrível.

Entretanto a PIDE cerca o presidente da associação académica e ele esteve 24h preso, libertaram-no no dia seguinte ao meio dia. Mas aquilo foi o rastilho. Começamos depois a juntarmo-nos na associação académica, havia lá noitadas em que ia o Zeca Afonso o Ary do Santos e outros. Queríamos uma nova forma de ensino, queríamos mais liberdade, queria se que nos deixassem terminar os cursos e só depois então irem para o ultramar, apesar de acreditarmos que a guerra era injusta. Aí começou a GNR a intervir, bloqueia a associação académica, com cargas sobre estudantes e sobre civis. Resolvemos a partir daí, sempre que saíamos da associação académica, vínhamos com cartazes, mas não falávamos, calávamo-nos. Eles (polícia) diziam que estavam proibidos os ajuntamentos a mais que um. Enquanto não fecharam a associação académica viveram-se momentos muito bonitos. Nós sonhávamos muito alto. Hoje, eu vejo que pensávamos que íamos mudar mundo, eramos um bocadinho líricos.

Os estudantes queriam uma universidade e um país mais livre e democrático.



Falou da guerra colonial e da forma como os jovens sentiam que ela era injusta. Como é se via essa guerra da sua parte.

Eu sempre achei aquilo uma injustiça, mas eu fui criada num ambiente que não era igual ao de toda a gente. Eu estive um ano na Guiné porque o meu marido estava lá a fazer a tropa.


Da parte do seu marido, também sentia essa guerra como injusta?

O meu marido só começou a sentir como injusta lá. A família do meu marido não era como a minha, por tanto não se apercebia tanto das situações, nem queria muito saber. Ele mudou, teve que mudar. Depois apercebeu-se que a guerra era injusta. Até porque ele teve com o Spínola lá e o Spínola já andava a ter conversações amigáveis com os chamados terroristas, coitados. Ele andava a fazer, mas eu penso que cá que não se sabia. Eles chamavam lhe jogar às escondidas. Eles combinavam com eles, determinados sítios onde se juntavam. Eu conhecia gente que dizia que ia para o jogo das escondidas e já se sabiam que estavam nas negociações, isto na guiné. Obviamente, essas conversações não deram em nada e, entretanto, veio o 25 de abril. O Spínola tinha uma ideia completamente diferente da situação. Claro que não o deixavam fazer muito, mas fez alguma coisa. Penso que o governo não tinha informações sobre isso.


Depois veio o 25 de abril, o fim da guerra colonial e a revolução. Onde é que estava quando se despoletou o 25 de abril. Quem era a Luísa Feijó no 25 de abril?

Já estava a trabalhar. Não sabia de nada, já tinha uma filha com dois anos e fui leva la à ama. E a ama tinha lá duas meninas que eram filhas de um GNR e esses GNR disse à mulher que fosse para casa e que não levasse as meninas para a ama. Deviam ser para aí oito e meia da manhã. Eu fui trabalhar com esperança que fosse desta que as coisas se resolvessem, mas muita esperança mesmo. O ambiente no laboratório foi eufórico no dia seguinte. Queriam ir logo para a rua. Eu fiquei a trabalhar. A partir de determinada hora, quando foi a emissão nacional, a partir daí pronto, veio tudo para a rua. O primeiro 1º de maio foi uma maravilha mesmo, foi qualquer coisa de excecional. Aí houve união em todo o país. Depois vieram os partidos, começaram a separar-se e depois foi o que foi.

Quando se fala dessa altura fala-se muito do medo. Também sentia esse medo ou era mais euforia?

Foi de euforia. Juntámo-nos todos ao pé da estação, saiu tudo à rua e foi a euforia e depois também houve a parte mais trágica, depois também se fazem disparates, também não concordei. Foram para a frente da PIDE, começaram a estragar os carros todos da pide. Isto tudo tem o reverso da medalha e essa parte não gostei. Depois de ver que o 25 de abril tinha ido para frente a, PIDE juntou se toda na sede e os carros todos lá fora. Viraram os carros, furaram os pneus. Com violência, não se chega a nada. Eles seriam castigados. Naquela altura eu revoltei me contra isso. Agora deixem a justiça tratar deles. O primeiro de maio foi um dia fantástico.


Depois vem o PREC, vem o 25 de novembro, vem a despoletar de um Portugal democrático. Como é que Portugal sentiu essa transição?

O primeiro tempo foi bom, muito bom. Mas depois, antigamente só havia o MDP e a União Nacional. O PCP já existia, na clandestinidade, já existia. Apareceram muitos partidos políticos cada um com as suas ideias. E aí deixou de haver aquela união que se sentiu no inicio. Mas depois formou-se a assembleia, o Spínola foi para presidente até haver eleições. Foram as eleições mais movimentadas de sempre. Eram filas e filas para se poder votar. Depois começaram as guerras entre partidos e eu costumo dizer que futebol e política entre família e amigos não deve existir, de maneira que as coisas começaram a descambar, começaram a haver certas rivalidades.


Talvez a campanha das presidenciais de 86 tenha acentuado muito essa divisão. Acha que a questão direita esquerda estava muito presente na sociedade nessa altura?

Estava e também notei essa crispação na altura da formação dos sindicatos. Quando apareceu a intersindical e a UGT, aí também houve uma grande desilusão. Tivemos grandes benefícios. Muito, muito grandes. Bem feito ou mal feio entregou-se, aquilo que não era nosso foi entregue, se foi a melhor forma, não ei. Hoje dizemos que não foi, entregou se as colónias a eles próprios, embora eles estariam preparados para ficar assim? Se calhar a ideia do Spínola tinha sido boa, se calhar preparando-os, as coisas tinham sido melhores. Mas foi tudo acontecendo pela pressão, pela euforia. O PCP estava muito bem organizado e os outros não. Eu acho que não foi a melhor forma. São países diferentes de nós, e porque é que nós os havemos de querer por a mentalidade igual à nossa? Por isso é que países tão ricos e continuam no terceiro mundo. Eu acho que a globalização foi muito boa, mas acho que determinados povos tem uma maneira de pensar diferente e devia ajustar a vida deles à maneira de ser deles.


Fala-se muito dos valores de abril. Acha que, de certa forma, olhando para o passado, tendo estado nesse processo todo. Acha que se falta cumprir abril?

Abril cumpriu a sua missão. Agora houve ali uns desvios.


Qual é que era a missão de abril?

A missão era a liberdade, completa. Nós somos livres. Mas ainda há muita coisa que está para fazer. Por acaso o governo agora tem lá mais mulheres, foi bom. E como isso há outras coisas. Eu acho que se fez muito, mas que havia ainda muita coisa para fazer e cabe-vos a vocês agora, para continuarem. A igualdade de género, por exemplo, isso foi tudo uma conquista. Seja na educação dos filhos, o trabalho de casa, tudo. Outra coisa é a conversa! Eu acho que a conversa que é muito importante e isso está a desaparecer. Acho horrível a dependência dos telemóveis, ninguém conversa. E isso acho que era uma das coisas que o 25 de abril não queria, até porque uma das coisas da crise de 69 era precisamente a conversa, o falar se, o comunicar. Podemos não estar de acordo com determinadas situações, mas falamos sobre isso. Isto tudo era o que se pretendia que viesse a acontecer do 25 de abril para a frente e nem sempre acontece. Mas isso deve-se as pessoas.


E é esse o conselho que dá aos chamados “Netos de abril”, ou seja, nós: o falar, o pensar, o conversar?

Pensar, conversar, ir à procura. Não ouvir e acreditar, saber se é verdade ou não, porque há muita contrainformação. E isso é um perigo, isso torna-se um perigo. Irmos sempre ver a realidade e transmiti-la. As pessoas devem procurar estarem informadas. Salazar o que é que queria? Era Fátima, futebol e Fátima. Quatro pessoas em cada três eram analfabetas. Isso interessava lhe. A instrução e a educação são importantíssimas. Tirar o melhor partido da educação que têm disponível. E, claro, nunca, mas nunca nos devemos agarrar ao facilitismo.


Fala em facilitismo e, nos momentos que correm, em termos políticos há muitos movimentos que na sua mensagem recorrem a isso mesmo, os chamados movimentos populistas. Acha que esses movimentos populistas põem em causa abril?


Eu acho que esses partidos que se estão por aí a formar, sabem falar e dizem o que o povo quer. No fundo, Salazar foi eleito, Hitler foi eleito pelo povo, é a mesma coisa. Eu agora estou a pensar no Chega, é o que eu estou a pensar. Deus me livre voltar atrás. Há coisas que se têm que modificar, porque o tempo passou, as mentalidades mudaram e as coisas têm que ser um bocadinho mudadas. Passámos para a globalização. Mas não voltarmos atrás, isso não. Isso perdíamos tudo. Espero que isso não venha a acontecer, mas tenho medo, tenho muito medo. Porque essas pessoas sabem falar para o povo. E o povo, cansado de vencimentos baixos, falta de progressões na carreira, coisas que não avançaram, avançaram no princípio e depois pararam, e outras tantas coisas, fazem-nos ouvir e pensar que eles têm razão, mas não têm. Mas eles só falam para encantar. Mas tenho medo, tenho muito medo.


É esse mais um conselho que deixa aos “Netos de Abril”? O de nunca mais pensar voltar atrás?

Nunca voltar atrás. É demasiado pesado, é demasiado pesado. Abril tem que se manter, manter e melhorar. E isso também nos compete a nós. Vamos lá ver, quando nós olhamos para o passado, às coisas não tinham nada a ver com o que é agora. As escolas não eram mistas, eram rapazes para um lado raparigas para o outro. As raparigas não podiam usar decotes, por exemplo. Cantar, só se podiam cantar coisas do Estado Novo. Para entrarmos para o autocarro, estava a empregada da escola à entrada para ver se nós realmente entrávamos. Era muito rigoroso. Era o que tínhamos.


Passado este tempo todo, passada toda uma vida cheia de memórias e acontecimentos marcantes. Hoje em dia, em 2022, sente que é uma mulher verdadeiramente livre?

Sou. Eu sou livre. Tenho a certeza absoluta.


*Este testemunho foi recolhido pela Associação de Estudantes da ESSMO (a entrevista foi conduzida por André Peixoto Pereira) com o apoio da professora Maria do Céu Baião

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