Apesar de ter apenas quinze anos, lembra-se da “explosão de liberdade” que a revolução representou. Hoje, passados quarento e oito anos, não tem dúvidas que “Abril cumpre-se em cada momento. Ele está cumprido, mas se nós não o continuarmos a fazer cumprir todos os dias, ele desaparece.”
Um professor e dois alunos sentados no meio de uma sala polivalente. Mais do que falar de abril, faz-se abril.
Quem era o Carlos Trincão no dia 25 de abril de 1974? Como é que o jovem Carlos Trincão viu o dia 25 de abril de 74?
O 25 de abril em 74 calhou em um dia de semana. O que eu me lembro mesmo é estar a ver a entrarem em Tomar, vindos de lisboa, muitos carros de combate. Imagino que vinham em direção ao Regimento de Rnfantaria 15. A grande surpresa foi quando cheguei ao Colégio. Naquela altura toda a gente tinha um rádio portátil. Naquele dia, a malta não estava com o rádio nos ouvidos, estavam com o rádio para todos estarem a ouvir. Foi nessa altura que eu me apercebi que tinha acontecido alguma coisa de anormal. Primeiro porque a malta estava de volta dos rádios de uma forma anormal. Segundo, os professores vinham ter connosco. Terceiro, não tocou para a entrada. Ao primeiro tempo nem houve aulas. Aquilo foi uma explosão de liberdade. As pessoas perceberam, logo naquele instante, que podiam começar a falar de forma diferente.
Nessa altura tinha quinze anos. Já tinha consciência política?
Não. A única consciência política que eu tinha na altura era sobre a PIDE.
Não teve aulas no primeiro tempo e depois? Como é que foi o resto do dia?
Depois houve aulas, mas não havia. Porque os rádios estavam a funcionar nas aulas. No primeiro dia, nós acompanhamos a par e passo o desenrolar dos acontecimentos. Foi a partir daí que a gente começou a cantar a “Grândola” e o “E depois do adeus”.
Normalmente fala-se em algum medo que se sentia na altura. Para um jovem esse medo talvez seja mais relativo, mas, nos dias 25 e seguintes, sentia-se nos professores, e nas pessoas adultas algum medo?
No dia 25 de abril desapareceram os medos todos, se é que os houvesse. Em Lisboa aconteceu o que aconteceu. As coisas foram muito rápidas. As pessoas naquele dia não foram para o trabalho. Foram para a rua. Portanto, aquele golpe de estado militar transformou-se numa revolução.
Porque, inicialmente, era só um golpe militar…
Porque aquilo nunca foi concebido como nenhuma revolução. Foi sempre concebido como um golpe de estado militar para retirar do poder um conjunto de gente que não servia. Transformou-se em revolução a partir do momento em que o primeiro cravo foi colocado numa espingarda, foi a adesão popular imediata.
Há uma frase atribuída a Salgueiro Maia, quando ele partiu do quartel de Santarém para Lisboa que é: “Existem os estados capitalistas, existem os estados socialistas e existe o estado a que isto chegou. Hoje, vamos acabar com o estado a que isto chegou”. Acha que o estado a que o regime havia chegado era insustentável?
Na altura não tinha consciência disso. Na altura a única consciência era que, no momento em que eu acabasse o dito liceu e eventualmente chegasse à universidade, dois anos depois, tinha a vida cortada porque ia para África. O que mais me atemorizava era ver na televisão a preto e branco, na altura do natal, as mensagens de boas festas e ano novo que a RTP ia fazer a África. Aquilo a mim dava-me muita ansiedade porque estava a ver aqueles jovens a desejar boas festas às famílias e a gente sabia que, se calhar, alguns no mesmo dia em que aquilo estava a passar na televisão cá, já tinham morrido. Com a abertura que houve no plano da informação, depois do 25 de abril, quando a informação passou a chegar sem restrição, foi quando começamos a formar alguma consciência, começámos a perceber que as coisas eram insustentáveis.
Depois da revolução vai para Coimbra e envolve-se em estruturas como a Associação de Estudantes, tendo um papel de ativismo político bastante importante. Como é que se sentia Coimbra nessa altura?
A grande diferença aconteceu em 76 porque, entretanto, tinha havido as eleições, e o Ministro decidiu que as escolas do magistério já não deviam ser comandadas, como eram, pelo PCP. Então, dois anos depois de se fazer as reformas, fez se a contrarreforma e acontece que, no país todo, durante o primeiro período, as escolas do magistério estiveram fechadas. Estávamos em inícios de outubro. Quando toca o telefone, eram os meus colegas de Coimbra a dizer que eu tinha que ir para Coimbra porque o Conselho Pedagógico, contra a vontade do Ministro, ia avançar com as atividades pré letivas. O que é que tinha acontecido? A esquerda do Conselho Pedagógico, alunos e professores, decidiram abrir a escola e criaram um programa com jornal, com atividades e conferências para fazermos no primeiro período. O diretor abriu a escola. Fez-se uma reunião geral de alunos, para falar das atividades pré letivas. Aquilo correu mal logo no terceiro dia porque no terceiro dia chegamos à escola e estava cercada pela polícia. Tinham vindo ordens do ministério via governo civil e que, tendo se ocupado a escola, não era possível a escola estar assim. Eu e alguns colegas somos escolhidos para ir ao governo civil. Vamos, surpreendentemente, somos recebidos pelo governador civil e ele, vendo o nosso programa, percebeu que nós tínhamos razão e mandou levantar o cerco. Quando chegámos à escola, fomos recebidos como heróis. Fomos recebidos com salvas de palmas, como se fossemos os grandes libertadores daquela escola. De certa forma, sentimos ali que tínhamos feito o nosso 25 de abril.
Depois de serem feitos o 25 de abril de 74 e esses vários 25´s de abril, Portugal continua a andar. Às vezes fala-se que de todos os sonhos que existiam nessa altura, nem tudo foi concretizado. Acha que se falta cumprir abril?
Extrapolando para os dias de hoje e para a nossa geração. Você faz parte da geração que assistiu ao 25 de abril. Que conselho daria aos "Netos de abril"?
Por muito idílico que isso seja, é a liberdade enquanto valor abstrato que nos determina, portanto, eu não posso dar conselhos a quem é tão senhor da sua identidade como eu. No plano da intervenção civil não posso dar conselhos. Em todos os momentos, em momentos chave, devemos fazer sempre duas perguntas: eu estou a ser livre? Eu estou a deixar que o outro seja livre? Se tu responderes que sim às duas perguntas, estás a cumprir abril. Não precisas de mais.
* Este testemunho foi recolhido pela Associação de Estudantes da ESSMO (a entrevista foi conduzida por André Peixoto Pereira e por Maria Inês Graça)
Sem comentários:
Enviar um comentário