quarta-feira, 27 de abril de 2022

A guerra colonial vivida na primeira pessoa

Um testemunho

Terminava a década de sessenta e, em Portugal, vivíamos em pleno Estado Novo, um regime político ditatorial e autoritário que tentava manter a todo o custo as suas colónias ultramarinas, consideradas uma fonte de prestígio e de orgulho nacional, ao mesmo tempo que os povos desses territórios procuravam a sua autodeterminação. Nesse tempo, lá fora condenava-se o colonialismo e os outros países abandonavam massivamente os seus territórios ultramarinos. Apesar de toda a pressão internacional, inclusive da própria ONU, o regime continuava a alimentar a Guerra do Ultramar. Eu era então um jovem como quase todos os que foram obrigados a ir participar nessa mesma guerra.

Tinha acabado o meu curso de Educação Física e preparava-me para entrar no mercado de trabalho, mas sempre receoso de ser chamado para o serviço militar obrigatório. Não fui exceção e, como tantos outros, fui chamado para integrar as fileiras das forças armadas. Até partir para uma das frentes de batalha (Guiné, Angola ou Moçambique) seria uma questão de tempo. E assim foi. Estava eu no quartel de Espinho, quando fui chamado ao comandante para me informar que iria gozar uns dias de férias, para me despedir da família antes de embarcar para a guerra colonial de Moçambique.


Numa demorada viagem de barco, depois de deixar Lisboa, desembarquei em Nacala, com destino a Pundanhar, em Cabo Delgado. Pundanhar ficava junto ao rio Rovuma. Não era uma cidade, nem uma vila, era apenas um aldeamento com palhotas e sem quaisquer instalações militares, minimamente apropriadas. Os soldados dormiam em “quartos” escavados na terra. Não havia nem luz elétrica nem água. A comida era de subsistência e de péssima qualidade: a água que bebíamos, de cor esbranquiçada, era transportada em bidons, faltavam-nos legumes e por vezes também a carne, o arroz trazia sempre uns bichinhos de surpresa.                    

Longe de tudo, “presos” no aldeamento, o tempo custava a passar. Éramos quase todos muito jovens e a juventude pede movimento, pede liberdade. Com vinte e poucos anos, quase meninos, tínhamos sido obrigados a deixar abruptamente lá muito longe, no continente, o conforto das nossas casas, os nossos empregos, a nossa família, os nossos amigos…. Para além de nós, militares, apenas contactávamos de vez em quando com alguns habitantes locais, que viviam em palhotas num pequeno e pobre aldeamento ali por perto e a quem dávamos algum apoio.  Naquele isolamento, havia uma avioneta, que nos visitava ocasionalmente e que nos ligava ao resto do mundo. Quantas vezes ansiei pela sua chegada!


Eram apenas duas as oportunidades de se sair da vedação de arame farpado: ou em operações militares por perigosas picadas e por mato cerrado ou nas colunas de viaturas militares para ir a Palma fazer reabastecimentos de víveres e de outros bens de subsistência. Entre esses acontecimentos procurávamos que o tempo passasse. É natural que um jovem anseie sair, mas nós partíamos sempre apreensivos e receosos de que, pelo caminho, explodisse alguma mina ou fôssemos atacados por aqueles que chamávamos inimigos…e muitas vezes fomos atacados quando regressávamos a Pundanhar! O cenário tornava-se então ainda mais dantesco: viaturas destruídas, mortos e feridos, sem haver condições de socorro imediato para os feridos.

Nestas ocasiões, depois de chegarmos a Pundanhar, tornava-se necessário chamar, via rádio, uma avioneta estacionada em Mueda para se fazer a respetiva evacuação para o hospital de Nampula. Mas, como a avioneta só podia voar de dia, nem sempre este meio de socorro chegava a tempo. E, quando tal acontecia, ficávamos com um camarada morto à espera que fosse possível aterrar uma avioneta ou organizar uma coluna até Palma para levar a respetiva urna. Mais uma família enlutada. Mais uma mãe que choraria a morte do seu filho. E até nestas situações, percorrer os 40 quilómetros entre Pundanhar e Palma consistia num perigo devido aos possíveis ataques e às constantes minas colocadas na picada.

 o tempo parecia nunca mais passar. Olhávamos uns para os outros, pensando quando se lembrariam de nos tirar daquele “buraco”. Ali nada chegava sem termos de correr riscos de o ir buscar. 

Sentíamo-nos esquecidos, abandonados. Faltava-nos conforto, alimentos, e até o correio, que de quando em vez a avioneta nos trazia, chegava a demorar 10 e 15 dias! Era a vinda das notícias possíveis dos familiares e amigos, mas muitas vezes abertas e lidas pela polícia política da PIDE antes de chegarem às nossas mãos, não fosse alguém dizer mal dos que nos tinham obrigado a ir para a guerra! 

E foi nesta situação que tivemos de sobreviver durante mais de dois anos das nossas vidas, não contando o tempo de formação aqui no Continente. Dois anos da nossa juventude. Naquela idade em que tínhamos o direito de ter vivido e de nos termos divertido.

Os anos mais apetecíveis da nossa vida, da minha e daqueles milhares de jovens empurrados para a Guerra Colonial, foram-nos roubados pelos ditadores que viviam em Lisboa e onde nada lhes faltava. Diziam-nos que nos orgulhássemos, pois lutávamos pela Pátria. Felizmente que o 25 de abril de 1974 aconteceu e pôs um término a esta situação, reconhecendo aos povos das suas antigas colónias o direito à autodeterminação. No porto de Lisboa, local onde embarcavam normalmente os militares, gritava-se “Nem mais um soldado para o Ultramar!”. A Guerra Colonial finalmente terminava.

Todas as guerras são violentas. Todas as guerras deixam, inevitavelmente, traumas para toda a vida em quem nelas se vê obrigado a participar. A Guerra Colonial não foi diferente. E estes traumas vividos pela minha geração foram/ são ignorados ou esquecidos por quase todos. Só os que viveram estas situações não se esquecem delas, porque ainda hoje os marcam negativamente. 

E ainda há quem aplauda as guerras!

Mário Tolda Garcia


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