No dia 25 de Abril de 1974 era eu uma catraia com 5 anos de idade.
A política nada significava para mim. Salazar, nas memórias que tenho dessa data, era alguém totalmente desconhecido.
Naquela altura, passava um período com os meus avós, em Trás-os-Montes. Os meus pais já viviam em Tomar. Era usual ouvir rádio e eu passava muitas horas a ouvi-lo e a tentar cantar os fados que os meus avós, carinhosamente, aplaudiam.
Recordo-me de ouvir uma música com um tom e uma letra completamente diferentes das habituais. De imediato, ficou-me no ouvido e passei a cantarolá-la incessantemente, de manhã à noite. Era tão linda aquela canção!
Na minha inocência achava a letra daquela música maravilhosa e inofensiva:
Uma gaivota voava, voava,
Asas de vento,
Coração de mar.
Por esse motivo não entendia por que razão os meus avós, que sempre foram tão carinhosos, me repreendiam, ralhavam e proibiam-me de cantá-la.
Tenho na memória uma madrugada em que os meus avós me acordaram com cara séria e preocupada, contrariamente ao que era normal neles. Fiquei preocupada, tão preocupada, tanto mais que via a minha mala feita e apercebi-me que me vinham trazer a Tomar. Porquê?! Os meus avós sempre me quiseram com eles! Estavam fartos de mim?! Já não gostavam de me ouvir cantar?! Os meus avós explicaram-me que algo de grave se passava. Havia uma revolução – algo que não entendi – e tinham de me trazer aos meus pais.
É bom que saibam que a viagem de carro, até Tomar, demorava nada mais, nada menos que doze intermináveis horas, por estradas íngremes, recortadas na Serra do Luso e do Buçaco, que lembravam carrosséis com voltas e contravoltas. Durante toda a viagem cantei a música da gaivota e, constantemente, ao longo de toda a estrada, os meus avós eram mandados parar por homens fardados.
Cada vez que avistávamos os homens fardados o meu avô pedia-me: “Carlita, por favor, não cantes. Pode ser perigoso! Não sabemos de que lado são estes homens. Podemos ser presos.” Eu, muito triste e amedrontada, calava-me sem entender o porquê.Finalmente, ao fim de quase um dia de viagem (sim, o tempo duplicou, com todas as paragens!) cheguei ao pé dos meus pais, que senti estarem nervosos e me abraçaram. Na rua, toda a gente cantava e distribuía flores e os meus avós disseram-me: “Carlita, agora já podes cantar a gaivota”.
Cantei, cantei, até me fartar.
Não recordo, logicamente, o dia desta viagem.
Recordo, apenas, um período da minha vida em que, de um momento para o outro, passei a ter liberdade de cantar.
Para uma criança com 5 anos foi o que representou o 25 de Abril!
Carla Sá Correia
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